Bombeiros das Caldas e de Óbidos destacam violência física e emocional da tragédia de Pedrogão

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Chamas, fumo, calor, ar irrespirável, pessoas em pânico. Com tudo isto os soldados da paz tiveram que lidar. | Joaquim Dâmaso / Região de Leiria

Na tarde de terça-feira o já considerado mais grave incêndio do século em Portugal continuava por controlar. Teve início na tarde de sábado e logo nesse dias partiram para a zona de Pedrogão Grande as primeiras equipas de bombeiros das Caldas da Rainha e de Óbidos.
Nos primeiros quatro dias estiveram no teatro de operações 40 bombeiros das Caldas, apoiados por um veículo de combate a incêndios e dois auto tanques, e 26 bombeiros de Óbidos, com uma viatura de combate a incêndio e outra de comando.
À Gazeta das Caldas, os soldados da paz que estiveram no incêndio foram unânimes em reconhecer as dificuldades que encontraram, pois ali estavam reunidas as piores condições físicas (com o vento, as altas temperaturas e a falta de humidade), juntamente com uma forte carga emocional, provocada pelo elevado número de mortes, conhecido desde o final do primeiro dia.

 

 

A vasta experiência que o bombeiro caldense Vítor Tavares tem em fogos florestais não atenua a emoção com que fala do grande incêndio que desde sábado tem lavrado em vastas áreas dos distritos de Leiria, Coimbra e Castelo Branco. O experiente soldado da paz, que se iniciou no combate a incêndios em 1986 e já esteve em alguns de grandes proporções como o Vila de Rei ou do Caramulo, diz que este o marcou e relatou as situações adversas com que se deparou: temperaturas altas, ventos fortes, humidade muito baixa e muito fumo. “É trabalhar no fio da navalha, porque a moral das “tropas” estava em baixo”, disse, lembrando que quando chegaram ao teatro de operações já tinham conhecimento da morte de 19 pessoas. A própria viagem desde as Caldas, que costuma ser feita com boa disposição, foi feita num silêncio profundo. “Foi difícil desde o início porque o semblante psicológico dos profissionais estava muito em baixo”, sustentou.

Em contrapartida, destaca que os bombeiros presentes “fizeram algo brutal – fomos muito profissionais e acho que não há bombeiros no mundo que, perante esta situação, conseguissem fazer melhor”.
Vítor Tavares foi para Pedrógão Grande ao fim da tarde de sábado. Integrava a terceira viatura que saiu do quartel dos bombeiros das Caldas da Rainha, juntamente com mais cinco soldados da Paz. O destino concreto ainda era desconhecido e só mais tarde souberam que iriam para as localidades de S. Neutel e Cabeças, situadas na extrema do concelho de Figueiró dos Vinhos com Alvaiázere, para onde se alastrava uma das frentes do fogo. Os bombeiros caldenses foram juntar-se a equipas de Juncal, Mira de Aire, Benedita e Alvaiázere.
“A nossa missão era livrar as aldeias do fogo”, contou à Gazeta das Caldas, acrescentando que já sabiam desde a primeira hora que seria uma missão muito difícil.
Durante a manhã começaram os meios aéreos a trabalhar e, em conjunto, conseguiram desviar a frente de fogo de uma das aldeias. “Conseguimos que as casas não ardessem, mas não conseguimos o objectivo principal que era apagar o fogo”, conta o bombeiro, dando nota das dificuldades sob as quais os bombeiros trabalharam.
Ainda assim, Vítor Tavares considera que este é um daqueles fogos onde todos os bombeiros devem ir, pelo conhecimento que ganham com a dimensão da operação ali desencadeada. “São fogos dantescos e que nos dão traquejo para enfrentar os nossos incêndios”, disse.

O DIA PARECIA NOITE, A NOITE PARECIA DIA

Pedro Oliveira seguiu no primeiro veículo da corporação de Óbidos que, por volta das 15h00 de sábado, se dirigiu para Pedrogão Grande para auxiliar no combate ao incêndio. “Quando chegámos não conseguimos ter a percepção de como aquilo estava”, conta o bombeiro que ficou, juntamente com a sua equipa, numa estrada junto ao IC8, a proteger do fogo as habitações e um depósito do gás que ali se encontravam. Aquela frente acabaria por ser controlada, ao final da tarde, com a ajuda de meios aéreos.
Seguiram depois para a aldeia do Troviscal, onde o trabalho se intensificou. “Tivemos que apagar o fogo em seis ou sete casas, mas só desde a parte exterior pois não conseguíamos entrar”, disse o bombeiro, acrescentando que no local apenas se encontrava meia dúzia de pessoas porque as restantes já se tinham ido embora.
Pedro Oliveira esteve ainda na freguesia da Graça, em Pedrogão Grande, algumas horas, no rescaldo, para garantir que não havia reacendimentos e acompanhou a equipa da Força Especial de Bombeiros, que tentava limpar as vias com uma máquina de arrasto. Doze horas depois foi rendido por outra equipa de Óbidos.
Bombeiro há 15 anos, Pedro Oliveira diz que este foi o incêndio mais complexo onde esteve. Recorda que na noite de sábado, quando estavam na aldeia do Troviscal, começaram a ouvir falar das mortes e isso afectou um pouco o ânimo dos bombeiros porque não sabiam se haviam colegas envolvidos.
A adjunta do comando de Óbidos, Patrícia Reis, foi fazer a rendição do comandante no domingo à tarde quando já se conhecia a dimensão da tragédia. Foi colocada em Castanheira de Pêra, onde o fogo ameaçava a vila. “Eu cheguei lá no sábado por volta das 16h00 e parecia que era de noite, por causa do fumo e, pelas 22h00, parecia que era de dia devido às chamas”, recorda Patrícia Reis, bombeira há 19 anos. Na viagem para Castanheira de Pêra passou por um dos locais onde morreram pessoas e diz que “é um sentimento que não se consegue explicar”.
Para além do combate ao incêndio, os bombeiros têm também que lidar com o pânico e ansiedade da população, que quer preservar a vida e os seus bens. “Apesar de não haver muitas vias de comunicação, as pessoas sabiam o que estava a acontecer e queriam que estivéssemos ali a defender o que era delas”, recorda, acrescentando que também colaboravam em tudo o que lhes era pedido. “Era uma ajuda mútua”, remata.
Patrícia Reis conta que, devido às condições adversas, as duas primeiras equipas foram rendidas após 12 horas de serviço, mas que desde segunda-feira estão a fazer rendições de 24 horas. Ela própria não esteve directamente envolvida no combate às chamas pois tem responsabilidades de comando, nomeadamente garantir a segurança da sua equipa, reconhecer os acessos e verificar se há reacendimentos.
José António Silva, segundo comandante dos Bombeiros das Caldas, também esteve no teatro de operações no primeiro dia e acrescenta que “as pessoas não fazem ideia da coordenação que é preciso ter num incêndio desta dimensão”. E relata que, ainda antes de chegar ao local, ficou impressionado com uma “linha de fogo de perder de vista”.
Este responsável fez questão de receber no quartel todos os bombeiros vindos do incêndio para perceber como estava o seu ânimo e se precisavam de apoio. José António Silva elogiou, em nome do comando, o trabalho feito pela sua corporação.

Onda de solidariedade para com as vítimas e os bombeiros

Ao início da tarde de terça-feira, Miguel Silva, residente em Salir de Matos e a trabalhar no Parque Tecnológico de Óbidos, foi entregar dois kits com material de primeiros socorros para tratar os ferimentos no quartel dos bombeiros de Óbidos. No estojo que os bombeiros levaram nessa mesma tarde para Pedrogão Grande ia creme para as queimaduras, soro, gaze e compressas para ajudar as vítimas deste incêndio de grandes proporções.
No dia anterior já tinha partido das Caldas da Rainha um camião carregado de água, fruta, medicamentos, talheres descartáveis e roupa, resultado de uma campanha conjunta da Rádio Litoral Oeste e da Gazeta das Caldas. O veículo com câmara frigorífica foi cedido pela empresa caldense Transwhite e permanecerá durante o resto da semana no local “para utilizarem naquilo que precisarem”, disse Manuela Sábio, gerente da Transwhite.
O mentor da iniciativa foi João Carlos Costa que, no seu programa de discos pedidos, no domingo de manhã, solicitou aos ouvintes que ajudassem as vitimas do incêndio. A resposta não se fez esperar, com as pessoas a entregar os seus donativos nos quartéis das Caldas e de Óbidos.
Também alguns empresários de Óbidos, como Anabela Capinha, se solidarizaram com as vítimas e os bombeiros, confeccionando centenas de pães.
Também do Bombarral partiu uma viatura com mantimentos para Pedrógão Grande. Água, leite, fruta, enlatados e bolachas foram alguns dos produtos que os bombarralenses foram deixando no quartel dos bombeiros, tendo a autarquia disponibilizado uma viatura para os fazer chegar às populações e aos soldados da paz que bravamente têm lutado contra as chamas. F.F. / J.R.