O sonho de Joana Oliveira e Tiago Fidalgo era ambicioso. Tão ambicioso que muitos se perguntaram se seria mesmo concretizável. Há 408 dias que estes dois jovens partiram numa viagem de 18 meses pelo mundo com um plano bem traçado nas mãos: deslocarem-se à boleia sem gastarem um euro em alojamento.
Já visitaram 32 países, apanharam mais de 460 boleias e percorreram 4300 quilómetros de estrada. Tudo isto com um orçamento de 2600 euros.
Aqueles que ao início duvidaram, hoje são inspirados por esta história que vem provar que as melhores coisas do mundo são grátis.
Dois de Março de 2016. Foi neste dia, há pouco mais de um ano, que Joana Oliveira e Tiago Fidalgo partiram do Painho. Casados de fresco, fizeram-no de dedo esticado para a estrada, mochila às costas e com um desejo enorme de conhecer o mundo. Espanha foi a primeira paragem.
De partida para os Estados Unidos no final deste mês, o jovem casal já passou por França, Mónaco, Itália, Eslovénia, Croácia, Sérvia, Macedónia, Grécia, Turquia, Geórgia, Arménia, Irão, Turquemenistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Quirguistão, Cazaquistão, China, Hong Kong, Macau, Vietname, Camboja, Laos, Tailândia, Malásia e Singapura. Todos estes países foram percorridos à boleia. Os planos só se alteraram na ida para Indonésia, cuja viagem foi feita de barco. O mar também serviu de chegada a Timor-Leste, de onde Joana e Tiago apanharam o primeiro avião, para Austrália. Actualmente estão na Nova Zelândia.
“Enquanto pudemos, evitámos sempre os aviões. Só que a Joana descobriu que tem medo de andar de barco e além disso era impossível irmos de Timor Leste até Austrália pelo mar, não só porque os cargueiros não tinham autorização para nos levar, mas também porque o mar estava muito revolto nessa altura e nem havia barcos particulares a fazerem viagens”, explica Tiago Fidalgo, 26 anos.
Desde embarcações comparáveis a cruzeiros, àquelas onde as casas de banho são um verdadeiro mistério e os coletes salva-vidas apenas disponíveis para os tripulantes que chegam primeiro, os dois jovens já viajaram em barcos de todos os tipos. Na Indonésia, por exemplo, notaram que as embarcações que faziam percursos de menos horas eram muitas vezes as que tinham piores condições. “Abanavam tanto que eu só conseguia ir deitada devido aos enjoos. Só que depois os indonésios não eram propriamente pessoas asseadas…”, recorda Joana Oliveira.
Inicialmente o casal tencionava atravessar a América do Sul e só depois seguir para os Estados Unidos e Canadá, mas decidiram recentemente encurtar a viagem em dois meses e excluir os países do subcontinente sul americano. Isto porque ambos já visitaram esta parte do globo – foi até no Brasil que se conheceram, num intercâmbio universitário, embora andassem ambos na mesma faculdade em Lisboa e antes na mesma escola nas Caldas. A mudança de planos é justificada pelo cansaço.
“Quando saímos de Portugal sabíamos que esta ‘lua-de-mel’ não serviria para relaxar pois o cansaço era expectável. Mas principalmente no meu caso, começou a ser frustrante lidar com o cansaço ao ponto de já não estarmos a disfrutar da viagem como antes”, revela a caldense de 27 anos, acrescentando que aquilo que estava em causa era já a felicidade do próprio casal. No blogue O Mundo na Mão, onde partilham com milhares de pessoas as aventuras deste projecto, justificaram a decisão dizendo: “Surgiu a tristeza. A tristeza de não encontrar beleza nos novos lugares. A tristeza da falta de vontade. A tristeza da apatia. A tristeza da insatisfação. E a tristeza da overdose de viagem”.
CONFIAR NO INSTINTO
Foi exclusivamente à boleia que Joana e Tiago percorreram os primeiros 28 países. Até à data, contas feitas, são mais de 4300 quilómetros e 460 boleias.
Levantar o dedo polegar para a estrada e estender com o outro braço um cartão com o nome da cidade-destino. É desta forma que os dois jovens preferem viajar e são teimosos o suficiente para esperarem até três dias por um carro que vá ao seu encontro. A maioria dos condutores que pára é homem, na casa dos 30 aos 50 anos, e conduz um veículo particular. “Quase nunca apanhámos boleias de camionistas, não só porque eles raramente param, mas também porque os camiões são desconfortáveis, normalmente estão preparados para levarem apenas duas pessoas, andam mais devagar e não nos deixam no centro das cidades”, conta Joana Oliveira, revelando que 11 horas foi o tempo máximo que passaram dentro de um carro.
Quando estão de dedo levantado horas e horas mas não obtêm resposta, Joana e Tiago improvisam. Já aconteceu deslocarem-se para sítios estratégicos – como estações de serviço – e abordarem as pessoas cara-à-cara. Mas só o fazem em último recurso. “É muito diferente um condutor que pára porque nos escolheu, porque pressupõe que somos aventureiros, àquele olhar que as pessoas fazem quando lhes pedimos directamente boleia. Nesses casos sentimos muitas vezes que nos encaram como delinquentes e que existe preconceito”, dizem.
E como sabem quando recusar uma boleia? O casal afirma que se limita a confiar no seu instinto, embora tenha apenas alguns segundos para decidir aceitar ou não. “Por norma quando o carro está em paragem já encarámos o condutor olhos nos olhos e fizemos um pré-juízo. Se a nossa barriga nos disser que ‘não’ é preferível ficarmos mais tempo à espera do que correr o risco de não chegarmos a lado nenhum”.
Para estes caldenses, a boleia não é apenas o meio de transporte mais económico para viajar, mas também aquele que melhor permite conhecer a cultura de um país. O contacto que estabelecem com os condutores termina muitas vezes em laços de amizade que mantêm após a boleia.
Claro está que o facto de Tiago Fidalgo falar 11 línguas facilita o processo de quebrar o gelo. Português, inglês, espanhol, francês e italiano são os idiomas que o jovem domina com mais facilidade. Depois desenrasca-se no russo, indonésio, polaco, turco, farsi (persa) e chinês. A namorada descreve-o como talentoso e com uma “memória de ouro”; Tiago responde que, talentos à parte, investe muito tempo a aprender novas línguas.
“Metade do tempo que estou em viagem num determinado país é passado a conhecer a sua língua”, refere, revelando que utiliza o bloco de notas do telemóvel para apontar as palavras que aprende, criando assim o seu próprio dicionário. A aprendizagem requer não só muito trabalho e tempo a falar sozinho (principalmente enquanto está no duche), mas também um grande à vontade para fazer perguntas. “Não posso ter vergonha! O que faço para não me tornar tão chato é perguntar a mesma coisa a pessoas diferentes, pois nem toda a gente tem paciência para ensinar”, conta, acrescentando que a China foi o país onde até agora sentiu uma maior barreira linguística, valendo-lhe as aplicações de tradução que tinha instaladas no telemóvel.
NUNCA PAGAR PARA DORMIR
Outra das regras inquebráveis da viagem deste casal é nunca pagar alojamento sendo a solução ideal ficarem hospedados na casa de um amigo (ou de um “amigo do amigo”). Caso não se aplique, recorrem à plataforma do Chouchsurfing (site de partilha de estadias por todo o mundo) ou, em último caso, pernoitam na tenda que levam às costas desde o início da viagem. Esta última alternativa só foi necessária seis vezes.
Além disso, Joana e Tiago também estabelecem parcerias com diversas unidades hoteleiras e em troca de publicidade no blogue (omundonamao.wordpress.com/) ficam alojados sem pagar. Até já se deu o caso de serem autorizados a dormirem num hospital na Indonésia, numa ocasião em que Joana teve que procurar um médico por estar com febre. O curioso é que foi bem medicada, alimentada e também a deixaram tomar banho por apenas 70 cêntimos.
Esta não foi a única vez em que a jovem ficou doente. Na Malásia apanhou uma infecção urinária e no Irão partiu um dente. Em particular a sua ida ao dentista foi experiência traumática – “chorei muito por causa das dores” – pois o dente foi restituído com chumbo, um material que em Portugal já nem é utilizado por ser tóxico. Felizmente a solução foi eficaz e será apenas temporária. A consulta custou 25 euros, porque Joana insistiu em renegociar com o dentista.
Poupar é mesmo um dos verbos imperativos para este casal. Num ano de viagem gastaram apenas 2600 euros, sendo os vistos a sua principal despesa (cada um já gastou quase 600 euros). Este valor não inclui o preço dos voos, mas mesmo com este gasto-extra os jovens mantêm a sua despesa diária abaixo dos 10 euros, tal como tinham previsto.
Um exemplo que demonstra como Joana e Tiago têm o fusível ligado à poupança é o episódio “Visto para os Estados Unidos”. No dia em foram chamados para a entrevista na embaixada americana em Auckland (Nova Zelândia), esqueceram-se que a fotografia a entregar deveria ter menos de seis meses. Com apenas uma hora para tirarem novas fotografias, os jovens recusaram-se a pagar 25 euros para em pouco minutos verem o assunto resolvido: optaram por pedir ajuda a uma criança que lhes tirou fotos com um telemóvel, enviando as imagens por e-mail. O passo seguinte foi procurar um cybercafé para descarregar as fotos e editá-las para o formato de visto; depois pediram emprestada uma pen para imprimirem as imagens numa loja própria por 49 cêntimos. Tudo isto com os nervos à flor da pele e muito suor à mistura.
ALIMENTAÇÃO VEGAN NÃO FOI OBSTÁCULO
Vegans, Joana e Tiago garantem que é possível viajar pelo mundo mantendo esta dieta. Mas realçam que no seu caso optaram por adaptar-se ao regime ovolactovegetariano (ovos e lacticínios são permitidos). “Tivemos situações de famílias que nos acolheram em suas casas e nos ofereceram refeições, por isso sentimos que estaríamos a ser ingratos se recusássemos todos os alimentos”, explicam, sublinhando que souberam sempre gerir as situações de forma a que ninguém se sentisse insultado. “Nos países muçulmanos notámos um enorme respeito porque eles mesmos têm restrições alimentares na sua cultura, enquanto a China é o melhor país para vegetarianos”, acrescenta Tiago Fidalgo.
Dos 40 quilos de bagagem, 10 são produtos alimentares que os jovens fazem questão de guardar nas mochilas. Isto porque nunca recusam a comida que lhes é oferecida, mais uma vez para poupar dinheiro. Também fazem questão de organizar o dia-a-dia de forma a aproveitarem os descontos que normalmente se praticam perto da hora de fecho dos mercados e superfícies comerciais. Na Tailândia, por exemplo, um quilo de mangas custa normalmente um euro, mas pode chegar aos dois cêntimos ao final do dia.
Dos 32 países visitados, Joana e Tiago destacam como favoritos Turquia, Irão, Tailândia, Cazaquistão e China. “São países que mantêm as suas tradições, quer na forma como se vestem ao modo como cantam. Destinos onde ainda só se vive dos mercados e não há internet em todo o lado. Onde um turista é visto como alguém especial e, por isso, é extremamente bem recebido”, contam.
Mais do que turistas, os dois caldenses descrevem-se como nómadas e viajantes alternativos, salientando que esta viagem pelo mundo só tem sido possível graças à generosidade e hospitalidade das pessoas que têm encontrado pelo caminho.