Há três semanas…

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O meu nome é Ana Gomes Branco, 27 anos, nativa das Caldas da Rainha, filha da Professora Filomena Branco e do Engenheiro e sportinguista Reginaldo Branco, neta dos enfermeiros José Gomes e Teresa Morais, tão queridos em Peniche. Estudei na EBI Santo Onofre e na Raúl Proença, frequentei os Pimpões – natação, ballet, sapateado, o English Centre, o Future Kids, fiz teatro, voleibol, participei no Jornal da EBI. Entrei para o Bloco de Esquerda em 2010 e aí faço a minha militância – participei em muitas marchas e manifestações desde adolescente, tenho um alma rebelde e revolucionária desde criança. Publiquei o meu livro de poesia, “Caminhos e Encruzilhadas”, em 2012. Licenciei-me em Ciências da Comunicação na FCSH-UNL em Lisboa. E depois parti para Nápoles, para seguir o meu sonho de representação de voz. E por amor.

Há três semanas, se me dissessem que eu iria estar hoje em Portugal sem poder sair de casa por duas semanas, eu ria-me. Há três semanas, se me dissessem que Itália iria estar em completo shutdown, em que as pessoas precisariam de um formulário para sair de casa, eu não acreditaria. Há três semanas, se me dissessem que Portugal fecharia praias, bares/discotecas, cancelaria voos com Itália, eu diria que essa pessoa só poderia estar a alucinar. Há três semanas, se me dissessem que eu iria viver o que vivi para escapar de Itália, eu simplesmente iria descartar essa hipótese. Há três semanas, Itália tinha 140 infectados, todos na região do Norte, região mais desenvolvida e com maior conexão económica com a China. Há duas semanas, Itália tinha mil infectados, já espalhados pelo país inteiro, devido a pessoas escaparem da zona do Norte. Há uma semana, Itália tinha já quase seis mil infectados e 233 mortos, inclusive nas suas ilhas. Ontem, Itália tinha 21,157 infectados e 1441 mortos. Esta é a curva de infecção. Rápida. Itália acordou tarde para o problema que tinha em mãos. Tomou a semana passada medidas agressivas de fecho total do Norte – 10 mil italianos escaparam para o Sul. Depois aplicou a quarentena total a toda a Itália. Mas foi tarde. Demasiado tarde. Os números escalam rapidamente e não dão tréguas a um sistema de saúde que não tem capacidade de resposta. E começou no Norte, a região mais rica e desenvolvida. Agora que desceu para o Sul, temo que o número de mortos vá escalar de uma forma descontrolada. Os hospitais do Sul não têm capacidade de resposta devido ao desinvestimento constante por parte dos sucessivos governos. Lembra-vos algo? Mas já lá vamos.

Há uma semana, Portugal começava a ter os seus primeiros infectados no continente. 1, 6, 9, 18… Ontem tínhamos 169. Hoje já temos notícia do primeiro infectado nos Açores e 245 em todo o território português. Portugal tardou em aplicar medidas agressivas. Mas tomou-as. E bem. Talvez as tenhamos tomado em tempo certo para aplanar a curva, para atrasar o pico. Atrasar – esta é a forma mais eficaz que temos para combater esta doença viral. Se pudermos travar, estaremos a dar oxigénio necessário ao nosso SNS para poder prestar serviços a todos os que precisam. Atrasar, porque atrasar significa que, apesar do tempo de crise alongar, o pico será menor. Atrasar e isolar, para salvar. Estas são as palavras de ordem. Porque Portugal não aguentaria os números italianos. E o desinvestimento no interior português (em paralelo com o desinvestimento na região meridional de Itália) poderá revelar-se fatal. Não é alarmismo ou exagero – é a realidade.

Há duas semanas, eu estava em Nápoles. Estava em casa com a minha namorada. Já saiamos só para o necessário. Os números na região da Campânia subiam para 17 e davam conta dos primeiros casos na cidade de Nápoles. Nesse domingo senti dores nos pulmões, mas descartei como fruto da ansiedade. Na segunda, ela tinha a primeira aula do semestre. Fomos a pé até ao edifício onde ela teria a aula. Passamos por várias pessoas a tossir ou espirrar – tentámos manter a nossa distância, e eu metia um cachecol a tapar a cara. Já se sentia algum medo. Na sala de aula de linguística, assisti a uma situação no mínimo caricata e assustadora – o Professor a espirrar sem meter sequer a mão à frente. Um hábito tipicamente italiano (talvez explique os números avassaladores). Os meus sinais de alarme soaram. Acabando a aula, caminhámos para recolher comida e comer em casa do nosso amigo – a ultima vez que o iria ver ao vivo durante algum tempo (ele iria voltar para a sua terra, Basilicata). Fizemos algumas compras no supermercado para eu poder ficar em casa sem sair e apanhamos o metro de novo para casa, devido ao peso das compras. À noite, comecei a acusar problemas nos pulmões e tosse quando estava deitada.

Terça-feira, a minha namorada regressou a casa, em Avellino. Pedi-lhe que tivesse cuidado, e ela manteve o seu cachecol (uma prenda da minha mãe, que ela usa sempre) a tapar a sua cara, que era o máximo que poderia fazer. Tentámos comprar máscaras há três semanas atrás, devido a ser asmática – mas já estavam esgotadas. Felizmente tinha conseguido comprar desinfectante. Quarta-feira tinha aula. Não fui – telefonei à escola e depois para o 1800 (o número equivalente ao da Saúde 24). Aconselharam-me a vigiar sintomas e ficar em casa. Quinta enviei um e-mail para a Embaixada portuguesa, a comunicar a minha presença e os meus problemas respiratórios. Sexta-feira, telefonaram-me prontamente. A Sra. Berenice Rossini foi um auxílio imprescindível nesses dias. No sábado acordei bastante pior. A minha namorada regressou para Nápoles e conseguimos, após uma manhã ao telefone, chamar uma ambulância depois do almoço. Fui para o hospital.

Hospital San Giovanni Bosco. Foi para onde a ambulância me enviou, para onde havia vaga. Na ambulância foram-me feitas várias questões – eu referi (tanto na ambulância como na chamada para o 1800) que era uma pessoa asmática. Meteram-me uma máscara e um cateter na mão (normalmente é no braço, mas a minha camisa não permitia tal). Deixaram a minha namorada vir connosco porque ela iria servir de tradutora para mim – afinal eu falo italiano, mas não fluente o suficiente para perceber o jargão médico. Já no hospital, fizeram-me um electrocardiograma e depois segui para a ala das emergências médicas. Apesar da minha cor de triagem ser amarela, o quarto onde me instalaram foi de código verde, decisão da médica depois de me observar com um olhar que durou três segundos no máximo. Aí, foi-me retirado sangue para análise (no total de 3 vezes, em variados pontos do meu corpo). A minha namorada contactou com a Embaixada e com o meu pai (felizmente ele fala inglês).

Esperámos horas sem qualquer novidade – dormitámos na minúscula cama de hospital. Após horas a fio, a minha namorada foi ver a médica. Deram-me uma injecção de Toradol – uma medicação para dores musculares e contra-indicada para pessoas com asma! A minha namorada, assim que soube disso, falou com a Doutora. Lá me encomendou um Raio-X (que não revelou nada, mas também foi feito às três pancadas). É nesta altura que me é dada a informação que o hospital onde me encontrava era o pior da região (e quiçá, de Itália) – a fama era tal que até a Embaixada o conhecia: afinal tinham descoberto uma mulher morta coberta de formigas naquele hospital. A minha namorada insistiu em que me auscultassem com o estetoscópio (procedimento natural para quando um paciente acusa problemas respiratórios), ao qual a Doutora respondeu que ali não se fazia assim. E saiu do seu turno sem me ver mais nenhuma vez.

O Doutor da noite, por sua vez, veio ver-me prontamente e auscultou-me. Fez-me perguntas e aconselhou pernoitar para observação. O Hospital não tinha mantas ou almofadas nem sequer algo para comer (sem máquinas de vendas e o bar fechado). Encomendámos McDonald’s (a ironia) e comemos na sala de espera. Casa de banho só com gaze porque também não havia papel higiénico. De noite administraram-me Flectadol (um anti-inflamatório e analgésico). Precisei ainda de oxigénio, porque o stress era tanto que já não respirava bem. Essa medicação, sim, aliviou-me as dores agudas que sentia no peito (apesar de não aliviar a pressão nos pulmões). De manhã cedo foi-me dada alta e, ao assinar os papéis, deu entrada um rapaz suspeito de COVID-19 que já estava há três dias com febre ou tosse. Assistimos à cena caricata de médicos a discutirem porque não o queriam ali, por que não teriam condições (apesar de terem um quarto de pressão negativa), porque ele não estava com a máscara posta adequadamente. Escapámos dali o mais rápido possível. Nesse domingo, foi-me aconselhado pela Embaixada ir para Portugal o mais rápido possível (“pense em regressar a Portugal já – não daqui a dez dias, já.”). Itália entretanto tinha colocado todo o seu país como zona vermelha, e aplicada a quarentena forçada a todos os seus habitantes.

Aí começou a minha saga “tresloucante”. Consegui, após duas horas de espera e por indicação da Embaixada, trocar o meu bilhete em Abril para quarta-feira dia 11, a partir de Nápoles, com um pagamento de 56 euros. Pode parecer egoísta, mas queria ter uns dias para me despedir da minha namorada – e já tínhamos planos de ver um filme terça à noite antes de eu partir. No entanto, as voltas foram todas trocadas. Terça de manhã, acordando mais cedo que o habitual, eu verifiquei o meu e-mail. Deparo-me com a minha origem de voo a partir de Roma em vez de Nápoles. Acordo a minha namorada, em pânico, e telefono ao meu pai. Tento arranjar soluções. Marco hotel para ao pé do aeroporto e tento marcar Flixbus para Roma – marcando dois horários diferentes (no total de 26 euros). Os dois foram umas horas depois cancelados. Malas feitas à pressa, formulário em mão, táxi chamado. Fomos a correr para a estação de comboios (10 euros de táxi) – com os planos todos furados, a despedida foi cruel e curta. Consegui apanhar o comboio das quatro e meia da tarde para Roma Termini. Coração irrequieto, só pensava se ela iria regressar bem e a salvo a casa. Chegada a Roma, meti-me num táxi para o hotel – custou-me 60 euros.

No hotel, a recepção tinha uma fita vermelha a separar os clientes dos trabalhadores de pelo menos um metro de distância. Hotel – 63 euros. Encomendei jantar através da recepção por uma aplicação de entregas, porque o restaurante estava fechado. Uma pizza, coca-cola e um tartufo (que nunca cheguei a comer), para dar um mínimo para que eles pudessem fazer a entrega – 12,5 euros. Comi a pizza gordurosa e recebi a notícia que Portugal iria suspender todos os voos de Itália a partir da meia-noite. O mundo desabou à minha volta. Chamadas atrás de chamadas – pais, irmã, tia, Embaixada, camaradas do Bloco de Esquerda, amigos, namorada. A Embaixada em Roma tinha sido apanhada de surpresa. Não tinham soluções práticas para o problema que eu e muitos outros estávamos a enfrentar. A solução de ir de carro era impensável – não tinha carro, não tenho prática de condução, teria de passar pela zona vermelha (que não é permitido) e a Áustria decidiu também fechar fronteiras no dia a seguir. O stress e a ansiedade levaram a melhor de mim – a pizza que eu comi, veio para fora. Uma noite muito mal dormida.

Na madrugada de quarta a minha irmã telefona – ela acha que me consegue um voo para Londres através da Ryanair, porque no seu website a Ryanair avisava aos seus clientes que os voos internos já teriam sido suspensos mas os voos internacionais iram se manter por mais uns dias. Voo comprado – 90 euros, desci para o pequeno-almoço – 7 euros. Marcação de um shuttle para o outro aeroporto (estava ao pé do Aeroporto Fiumicino e o voo seria a partir do Aeroporto Ciampino) – 60 euros. Feito o checkout, viajo no shuttle e chego ao Aeroporto. Mala despachada, passo pela segurança – maior parte dos trabalhadores com máscaras e luvas. Casa de banho, só uma pessoa de cada vez. Cadeiras alternadas. No controlo dos passaportes, os passageiros passavam por um scanner que verificava a temperatura corporal com termómetro laser. No entanto a tripulação da Ryanair encontrava-se desprotegida. Muitos passageiros possuíam máscara própria ou, como eu, usavam cachecóis para tapar a cara. Comprei umas batatas fritas e uma água – 6,50 euros. Quando estava a voar, o meu pai comprou um voo pela TAP para Lisboa – 110,49 euros.

Chegada ao aeroporto de Stansted, deparo-me com um cenário de total falta de controlo ou verificação. Foi-me dado um flyer, e foi isso. Não me foram feitas nenhumas perguntas à saída do aeroporto, mesmo quando eu referi que vinha Itália. Comprei um brownie e um Ice Tea de limão – 2,50 libras. Saí do aeroporto e apanhei o autocarro National Express com um bilhete pago pela minha irmã – 13 libras. Chegada a Victoria Station tentei encontrar algo para comer que fosse rápido – mas não encontrava o que a minha irmã me tinha sugerido. Então meti-me logo no comboio – 18 libras. Chegada ao Aeroporto de Gatwick, apanhei um táxi para o hotel – 11 libras. Chegada ao hotel (um hotel reservado pela minha irmã que trabalha na cadeia Marriott e por isso obteve um largo desconto na reserva), finalmente me instalei e relaxei um pouco desde o início desta odisseia. Desci para comer no bar, comprei um adaptador (pois tinha deixado o meu em Nápoles e não sabia que iria precisar dele) – 8 libras; e depois regressei ao quarto e adormeci cedo. No dia a seguir, tomei o pequeno-almoço e dei uma entrevista por Skype à SIC, que iria ser transmitida no jornal da noite. Arrumei as malas, fiz o checkout – 75,72 libras; e chamei um Uber para o Aeroporto – 14 libras. Em Gatwick também não havia controlo. Comi uma sandes – 5,10 libras. Passei pelo controlo e dirigi-me à porta, esperando pelo embarque. Só quando estava dentro do avião, a voar, é que suspirei de alívio. Estava finalmente a regressar a Portugal.

Chegada a Lisboa, também aí o controlo foi zero. Esperei pelas malas e fui ter com os meus pais – que não esperavam que eu saísse tão cedo. Nada de abraços ou beijinhos e fomos directos para o carro para viajar para as Caldas. Os meus pais já tinham tudo preparado para não terem de sair de casa a não ser para emergências. No dia a seguir telefonei à Saúde 24 enquanto os meus pais iam ao Centro de Saúde para ver se minha mãe teria de estar em quarentena também e para obter um papel de justificação para esse dia. Reportada a minha situação (e tendo já falado com um médico de saúde pública que disse que a probabilidade era de ter despoletado uma crise de bronquite asmática prolongada devido ao stress e ansiedade), foi-me aconselhado a fazer isolamento social e manter vigilância de sintomas. Já do Centro de Saúde das Caldas foi iniciado uma vigilância via telefónica diária – duas vezes por dia recebo uma chamada a perguntar-me por sintomas e temperatura corporal. Agora sigo à risca os procedimentos indicados e aguardo o fim da quarentena para marcar uma consulta de pneumologia.

Recordem-se. Há três semanas, há duas, há uma, eu nunca iria pensar que ia estar na situação em que estive. Há uma semana, eu nunca iria conseguir conceber que eu, o meu pai e a minha irmã teríamos de gastar 532.91 euros para eu poder sair de Itália. Felizmente, os meus pais puderam. Há quem não tenha tido essa sorte. Há quem ainda esteja preso em Itália. Ou agora, em Marrocos, ou noutros países que cancelaram voos.

O povo italiano é feito da mesma fibra que o português. Se eles conseguem seguir as regras, nós também. Ficar em casa. Praticar higiene respiratória. Desinfectar. Não entupir a linha de Saúde 24 com chamadas desnecessárias. Lavar as mãos. Escutar e seguir as indicações da DGS.

Somos todos italianos. Fomos todos Wuhan. Seremos todos Portugal.

Ana Gomes Branco