Era uma vez…

0
2750
Gazeta das Caldas - Era uma vez
| D.R.

O Bufarinheiro

O Hospital de Odemira, instalação paupérrima pertença da Misericórdia, era o único recurso de assistência na doença que havia no concelho, quando lá chegaram os médicos do serviço médico à periferia. Corria o ano de 1975.Eu era um desses médicos.
Duas enfermarias_homens e mulheres. As camas, ou não tinham colchões ou tinham umas esfarrapadas mantas, que fugiam pelos buracos da malha metálica suportada de forma instável pelas cabeceiras e pelos pés. Estruturas que há séculos não viam tinta. O bolor das paredes impedia de ver a cor primitiva. Um único e longo corredor. Num topo a oeste a entrada. No outro, a cozinha e a saída para poente.
De ambos os lados do corredor havia portas que ainda hoje dão acesso, na minha memória, a algumas situações muito difíceis de contar.
Neste hospital havia uma cozinheira mal encarada e uma ajudante franzina, perdidas ambas, na confusão de meia dúzia de tachos e panelas muito tristes. Tristes todos os trastes da cozinha.
Um dia os Bombeiros trouxeram um bufarinheiro muito ferido: o cavalo tinha-o mordido profundamente no antebraço. O homem estava cheio de dores,sangrava muito. Nunca tinha feito vacinas. Mas estava era magoado por não entender como é que um animal tão amigo, o tinha atacado e mordido. Não queria ser transferido para um hospital grande. Não podia deixar abandonados o cavalo, nem a carrocinha, cheia de quinquilharia, dos quais dependia a sua vida.
Um colega, com mais experiência em cirurgia, inspecionou a ferida e resolvemos todos que era melhor intervir mesmo ali. Limpar a extensa ferida e fechá-la. Era difícil naquelas condições. Mas o colega João Pequeno,fê-lo.
Para que o bufarinheiro ficasse no hospital, sob vigilância e em descanso, tivemos de prometer admitir também o cavalo, que ficou um mês ali, a comer erva na cerca em volta. Ali no alto da colina .De vez em quando um amigo subia cá cima uns braçados de palha para arredondar a barriga do animal, que dava pelo nome de Zurrapa. Outra mão amiga trouxe dois grandes sacos de juta para aconchegar o lombo do bicho.
Mesmo assim o novo hóspede,doente e amigo, não sossegava_ todo o dia andava, de este para oeste, no corredor. Sem parança. No meu turno perguntei-lhe a causa do desassossego. Tentei fazer-lhe ver que precisava de descanso. Ele era muito alto, muito magro, muito reservado.
Contou-me que tinha sido adotado por um padrinho, também bufarinheiro de quem, por morte, herdara o negócio. Não tinha conhecido os pais. Nunca tinha vivido dentro de portas, era a primeira vez que dormia numa cama. Na carrocinha tinha tudo o que possuía. Era o seu lugar no mundo. Não estava acostumado a conviver tão de perto com outras pessoas. O Zurrapa era o melhor amigo, já tinham feitos as pazes.
Enquanto ele ficou connosco, um mês bem medido, quando era o meu turno da noite e acabada a correria dos doentes, íamos os dois sentarmo-nos no degrau da cozinha. A ver estrelas e a falar disto e daquilo. Mais até ficávamos mais, era em silêncio. Ele disse-me que não tinha muitas palavras para poder falar dos seus pensamentos.
O bufarinheiro não tinha documentos. Nunca tinha sido registado. Não tinha nome.
Teve alta,curado. Foi embora com a carroça, o cavalo, a mercadoria . Nem posso contar como foram as despedidas.
Não tenho coragem. À noite gosto de ver o brilho das estrelas cadentes. O meu Avô disse que eram como amigos que nos vinham visitar.