Cervejaria Camaroeiro Real celebra 50º aniversário

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Gazeta das Caldas
| D.R.

O Camaroeiro Real celebra este ano o seu 50º aniversário. A cervejaria que três amigos criaram entre a Praça da Fruta e o Hospital Termal mudou bastante em cinco décadas, mas é ainda um ícone da cidade. Gazeta das Caldas recorda as tardes e noites a jogar bilhar, uma imagem comum a muitos caldenses, que ali passaram muitas horas da sua juventude.

Há 50 anos, nas Caldas, três amigos – Carlos Tomaz, António Plácido e Júlio Luís dos Santos – lançaram uma cervejaria com bilhar na conhecida rua das Cavacas (rua da Liberdade), que liga a Praça da Fruta ao Hospital Termal. As portas do Camaroeiro abriram pela primeira vez a 18 de Dezembro de 1968.
Cinco décadas depois, o Camaroeiro Real (em homenagem ao camaroeiro usado para salvar o príncipe que faz parte do brasão da cidade) continua aberto e com um horário de funcionamento até às duas horas da madrugada, com cerveja e petiscos. Mas muito mudou…
As mudanças começam logo na entrada, que antigamente tinha duas portas: em frente (que dá hoje acesso à sala) entrava-se para o bilhar, e à esquerda (que hoje é zona da copa) ia-se para a cervejaria.
Antigamente, a cervejaria era apenas um estreito corredor com um balcão corrido, onde hoje em dia está a copa e a zona de pessoal e arrumos. A sala de jogos tinha mesas de bilhar, mais de uma dezena delas, que atraíam muita gente, sobretudo jovens que aí passavam muitas horas, tardes inteiras de sábados e domingos, muitos serões até à hora do fecho. Um vício.

As mesas foram retiradas há mais de 20 anos e a cervejaria, baseada em pratos rápidos, feitos na hora, mudou para essa sala.
José Monteiro adquiriu a empresa há 15 anos e tem tentado “recuperar alguma da filosofia antiga, como o molho do prego à Camaroeiro e os horários a fechar até tarde”. Na altura o estabelecimento não vivia os seus melhores dias. Isto explica-se, segundo o empresário, pelo facto de nessa altura estar a trabalhar como restaurante comum quando, na verdade, o que diferencia o Camaroeiro de outros estabelecimentos de restauração é o seu conceito de cervejaria, com horários tardios.
O empresário manteve o balcão, o nome e a disposição da sala. De resto, tudo foi alterado, com paredes pintadas, novos prospectos, louças e logótipo.
Além disso, quando assumiu a gestão do espaço trouxe uma receita de francesinha que “não havia na zona e foi uma aposta ganha”. Hoje em dia, as francesinhas do Camaroeiro já são conhecidas na região, mas os petiscos mais procurados continuam a ser os bifes, pregos e bitoques à Camaroeiro. Hoje, qualquer caldense que queira comer um bife, sentado à mesa, depois da meia-noite, sabe que o Camaroeiro é o sítio certo.
Até 2010 o Camaroeiro conheceu “anos muito bons a nível de movimento”. Depois disso, veio a crise e as “quebras muito grandes”. Acresce que foram feitas “alterações no centro da cidade que não estão a abonar a favor do comércio, especialmente no que toca ao estacionamento”, lamenta-se José Monteiro, explicando que, na sua óptica, “os parques subterrâneos não são solução”.
Por outro lado, quando este estabelecimento foi criado, esta era uma zona extremamente comercial, entre a Praça da Fruta e o Hospital Termal. “Favorecia muito a casa, mas hoje em dia a Praça favorece um bocado porque traz muitas pessoas, mas o Hospital Termal não porque há uns anos deixou de ter influência que tinha e que esperamos que um dia volte a ter”.
Mas as principais críticas de José Monteiro são à falta de estacionamento, que “tem vindo a matar a cidade a pouco e pouco”.
Nestes anos, e nessa tentativa de recuperar a filosofia do lugar, José Monteiro também tentou trazer de volta as fatias douradas, mas não tiveram aceitação.
Muito do que o empresário sabe da casa vem também de conversas de clientes antigos, que recordam episódios ali vividos. Quando saíam da escola os jovens vinham para aqui jogar e muitos, hoje adultos, lembram-se que “estavam mais tempo aqui do que na escola”. Também há quem, sentado ao balcão, se recorde daquele prego que veio comer com amigos às tantas da manhã.
Os rituais à mesa que existiam foram afectados pela crise. Aquelas pessoas que vinham sempre no aniversário de um membro da família, ou que tinham um dia sempre marcado, são cada vez menos.
Em contrapartida, existem hoje muitos caldenses que emigraram ou estudantes que passaram pela cidade e que quando regressam fazem questão de ir ao Camaroeiro. “Às vezes ligam-me quando estão a sair do aeroporto a marcar mesa”, conta o empresário.
O Camaroeiro Real tem 67 lugares, dos quais sete ao balcão. Hoje são quatro funcionários, mas chegaram a ser dez. Está aberto todos os dias, excepto à terça-feira.
Entre as iniciativas mais recentes está uma máquina de rifas em que sai sempre prémio, seja um café, uma imperial, uma francesinha ou um bife da vazia. Há outra ideia que pretende valorizar a cerâmica malandra da cidade: é possível beber um café e ficar com uma chávena e pires caldenses por seis euros.

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O Chico do Camaroeiro

 

Falar do Camaroeiro Real é falar do Sr. Chico (Francisco Oliveira). É uma cara que todos associam àquele espaço. Pudera… Trabalha ali há quase 40 anos ininterruptos.
Homem de poucas palavras, guarda em si centenas de histórias passadas dentro daquelas paredes.
Natural de Ovar, veio para as Caldas trabalhar no restaurante O Telheiro. Começou a trabalhar no Camaroeiro Real em Junho de 1980. Hoje em dia, recebe àquele balcão homens que atendeu ainda em miúdos e que “ainda me conhecem”.
O patrão reconhece o papel de Francisco Oliveira naquele estabelecimento comercial. “Ajudou-nos muito e continua e a ajudar”, esclareceu José Monteiro. I.V.

[caption id="attachment_123692" align="aligncenter" width="300"]Gazeta das Caldas Francisco Oliveira trabalha naquele espaço há 40 anos e é conhecido como o Chico do Camaroeiro | I.V.[/caption]

 

TESTEMUNHO

“O Camaroeiro é eterno para uma ou mais gerações de Caldenses”

Por: Paulo Caiado

 

Para os da minha geração e particularmente os rapazes que frequentaram o liceu do parque, o Camaroeiro Real era um local indissociável da sua juventude.
Durante seis anos eu estudei no liceu do parque. Desses seis eu tive de esperar quatro longos anos para poder entrar sem receios no Camaroeiro Real. Foi quando fiz 16 anos e que pude então ultrapassar o cartaz que à entrada restringia a sala de jogos a maiores de 16.
Claro que antes disso vagueei por lá, um pouco a medo que me viessem a pedir a identificação ou, que alguém me denunciasse.
Parece estranho estar com uma afirmação destas mas não raras vezes, eu e os meus colegas, fomos interpelados pelos funcionários e educadamente convidados a sair.
Ocupados que estavam com o serviço de bar na outra sala, certamente não teriam dado por nós, não fosse uma qualquer reclamação dos clientes habituais, na casa dos vinte e dos trinta, que assentavam praça todas as tardes e noites nas mesas de bilhar e de pool. Quando chegavam e nos viam, os miúdos do liceu, a ocupar qualquer uma das mesas estando as outras ocupadas, era certo e sabido que ou acabávamos o jogo em dez minutos ou discretamente faziam chegar aos empregados a notícia que estavam uns putos, com idade irregular, a ocupar as suas mesas. E lá vinha um, fingindo-se zangado mas com um olhar de cumplicidade, a pedir, com voz de exigência, que nos retirássemos da sala. Não sem que antes pagássemos a conta, claro está. Poderíamos não ter 16 anos mas o nosso dinheiro tinha o mesmo valor, ainda que, sendo a idade a razão de nos impedir um jogo de adultos, tivéssemos todo o direito de pagar em notas do Monopólio.
Aos 16 pude entrar então de queixo erguido na sala de jogos do Camaroeiro. Não fosse por isso que não acabássemos, ainda assim, atirados para fora das mesas de bilhar, desta vez não era preciso chamar o empregado. Os veteranos faziam valer os seus direitos de usucapião para cedermos logo as mesas. Se resistíssemos dávamos por nós a ficar sem as três bolas que eram metidas com um gesto rápido nas caixas de contagem.

OS “FUROS” NO LICEU E OS CAFÉS DA PRAÇA

Esqueçamos então os bilhares, o pool e muito sobretudo o snooker. Para isso teríamos de encontrar as salas livres no Maratona, no Marinto, na cave do Central, mas com excepção das mesas de bilhar desta última, tudo o resto ficava longe de mais para quem procurava apenas ocupar o tempo de um furo.
Um furo. Era assim que chamávamos a um intervalo de uma ou mais horas no horário das aulas, fosse por organização dos ditos horários, fosse pela falta de um professor.
Nessa altura os estudantes, impedidos de permanecer nos corredores e átrios do liceu para não incomodarem com as suas vozes o normal funcionamento das aulas, escapavam-se para o parque ou para os cafés das imediações. A Machado, a Java, o Baía, o Gato Preto, ou indo mais longe, a todos os das imediações da Praça da Fruta. A Zaira, a Taiti, o Invicta, o Bocage, o Central, o Lusitano, o Flor de Lis, o Convívio, a pastelaria Conde.
Se estávamos acompanhados pelas nossas colegas femininas iríamos ocupar uma mesa de um desses cafés mas estando só os rapazes, o nosso pouso era a sala de jogos do Camaroeiro.
O Camaroeiro era para mim um local de culto e até então quase venerado pelas memórias que me trazia e pelas raras oportunidades que eu tinha tido até então para trespassar a sua porta e subir aqueles curtos lancis de escada.
Umas duas ou três vezes por ano, sempre no Verão, e até aos meus dez ou 12 anos de idade, o meu avô materno, João de Sá Nogueira, levava-me a jantar fora com ele. Sempre sozinhos, os dois, eventualmente com a presença dos meus primos direitos, rapazes.
Eram momentos entusiasticamente aguardados. Quase um cerimonial de iniciação, neste caso a jantar fora sem os pais.
Sentávamo-nos ao balcão, que satisfação. Fazia parte do ritual. À mesa não daria o mesmo prazer. Eu sei, uma vez fomos parar a uma mesa do primeiro andar, por falta de bancos disponíveis ao balcão, e fiz prometer ao meu avô lá nos levar num outro dia porque aquele não tinha contado.
Então pedíamos um prego à Camaroeiro. Directamente na frigideira, o bife sem se ver, submerso em batatas fritas, ovo estrelado, pickles e azeitonas.
Um festim. Um manjar de reis. A acompanhar, dentro do clima de excepção que constituíam aqueles jantares com o avô, não vinha água da torneira mas uma Rical ou um Frutol de laranja, refrigerantes da nossa terra.
O Camaroeiro era para mim a catedral da gastronomia e esse lugar só veio a ser ocupado anos mais tarde, já jovem e no final do liceu, pelo recém-inaugurado Convívio com o seu famoso bife e pelos tão anunciados camarões tigres de Moçambique.
Agora esses tempos de deslumbramento a jantar com o meu avô ao balcão do Camaroeiro começavam a ficar para trás e já não era a sala do snack, agora permanentemente ocupada por grupos habituais que se sentavam invariavelmente à mesma mesa, como o Xixas, o Zé Luís e o Rogério e as suas amigas, funcionárias da Goya e da Talia, e outros de quem recordo os rostos mas não os nomes, mas a sala de jogos que me atraía.

AS MARAVILHOSAS MÁQUINAS DE FILPPERS

Impedidos pela idade ou pela falta de antiguidade de posto, de jogar nas mesas de bilhar, passámos a ocupar as diversas máquinas de flippers ao fundo da sala.
Cada um escolhia as suas preferidas. Para mim e durante dois anos, a primeira e a terceira a contar do lado direito. Conhecia-lhes os truques e as manhas. Sabia como bater recordes de pontuação dando o jeito certo ao pulso, doseando a força, inclinando o corpo.
Depois havia os truques: levantávamos as máquinas no momento certo, tombávamo-las para um dos lados, dávamos-lhes uma valente palmada no sítio adequado. Eram mais achocalhadas que um shaker de um cocktail, coitadas das máquinas.
O pobre do Sr. Júlio, bem que pedia ao responsável da sua manutenção para alterar o equipamento que media a sua sensibilidade e que ao serem agitadas disparavam a função Tilt, terminando de imediato aquele jogo.
A nossa perícia era agora demonstrada pela forma como conseguíamos agitar a máquina sem desencadear o Tilt. Tornei-me um expert naquelas duas máquinas e com isso descobri uma nova vocação. Fazer o milagre dos pães com 5 escudos, o preço de um jogo.
Quando se atingia uma determinada pontuação em cada jogo ganhava-se outro jogo de bónus. Em algumas máquinas, como aquelas duas, existiam vários escalões de pontuação que atribuíam um maior número de bónus até ao limite de cinco.
Quem, como eu, conhecesse os truques às máquinas, única forma de atingir a pontuação que dava direito aos bónus, poderia passar a tarde a jogar flippers com os 5 escudos iniciais. Mas haviam outros rapazes em fila de espera, aguardando que nos esgotasse o dinheiro (no meu caso não mais de 10 escudos, o preço da revista Motor ou da Automundo ou da soma do Mundo de Aventuras e da Falcão, que comprava semanalmente) para poderem jogar.
Como não eram tão hábeis – ou mais precisamente, não tão conhecedores dos truques das máquinas – concluíam os jogos em instantes sem conseguir qualquer bónus. Então deu-me para o negócio. Para poderem ocupar o seu lugar nas máquinas, o que nunca conseguiriam enquanto eu estivesse a jogar e a ganhar jogos extras de bónus, teriam de me pagar os jogos em vez de introduzir o dinheiro nas máquinas. Para eles era igual mas para mim era um esquema muito rentável. Eles não conseguiam os bónus e precisavam de gastar 5 escudos em cada novo jogo. Estes jogos eram vendidos por mim que os ganhava a custo zero por serem bónus. Claro que a casa fartou-se de perder dinheiro com esta operação enquanto eu entrava com cinco escudos e saía muitas vezes com cem.
Demorou algum tempo até à gerência perceber que as máquinas estavam a ter pouco rendimento em função do seu tempo de ocupação. Na verdade demorou quase dois anos. Eu também só lhes roubava umas duas horas de facturação. Nessa altura e como não podiam estar a vigiar a sala, reduziram os bónus a um jogo. Passei a jogar de borla mas sem rendimentos. Jogava uma vez, tirava o bónus, revendia-o e jogava depois um novo jogo. Ocupava aquela hora do furo das aulas a jogar gratuitamente. A determinada altura fartei-me dos flippers. Ou porque se tornara repetitivo ou porque eu amadurecera. Nunca mais voltei a jogar e anos mais tarde desapareceram dos cafés sendo remetidos para salas de jogos que não frequentava.

UMA RECORDAÇÃO VIVA

Com a minha ida para a universidade deixei de frequentar o Camaroeiro. Foram anos de Lisboa e depois anos de Coimbra. Estive demasiado tempo afastado da cidade e os meus colegas de liceu não voltaram mais. Perdi os laços com o estabelecimento mas O Camaroeiro Real permanece como uma viva recordação da minha convivência com essa pessoa verdadeiramente excepcional que era o meu avô materno e com os meus melhores tempos de juventude. Faz assim parte da minha vida. Existem locais que pela ligação que têm com períodos ou momentos inesquecíveis da nossa vida, até mesmo ao nível afectivo, se tornam eternos. O Camaroeiro é eterno para uma ou mais gerações de Caldenses.