Estefânia Barreto, 94 anos, tem duas moto4. Uma para trabalhar na sua quinta e outra que usa quando vem às Caldas.

Aos 94 anos Estefânia Barreto levanta-se bem cedo, dá comida aos seus animais e cuida da horta. Em seguida, pega na sua moto 4 e vai aos seus afazeres: ao supermercado, à praça ou aos Pimpões onde pratica natação duas vezes por semana. E ainda faz todas as tarefas ligadas à casa e à quinta onde vive. É com gosto que cozinha para si todos os dias e aos fins-de-semana para a família. Só não é fã das novas tecnologias e por isso mantém-se afastada dos computadores.

Nasceu nas Caldas em 1924 e, com oito anos, veio morar para a Quinta de Sto. António, lugar onde ainda hoje reside.
Tem por hábito levantar-se cedo e, tomado o pequeno-almoço, vai alimentar os seus animais: pássaros, galinhas, coelhos, codornizes e porcos da Índia.
Logo em seguida vai aos seus afazeres fora da quinta e tanto pode pegar na moto 4 como no seu carro. “O meu médico diz que estou apta a conduzir até ao próximo ano. Tenho muita prática, nunca deixei de guiar”, referiu a nonagenária, que obteve a sua carta de condução a 3 de Junho de 1946. “Fui a quarta mulher nas Caldas a fazê-lo”, disse a caldense que vai celebrar 70 anos de licença para conduzir. Nesse dia, com Estefânia fizeram provas 40 homens. “Metade deles ficou mal na prova escrita. Eu era a única mulher e passei à primeira”, acrescentou.
Quando fez 50 anos, a caldense anunciou ao marido e aos filhos que ia vender o carro e comprar uma mota! E assim fez, tendo adquirido uma Casal 2 que a acompanhou durante vários anos.
“Adoro a sensação de liberdade que nos dá o andar de mota… É algo completamente diferente do carro”, disse Estefânia, explicando porque é que trocou a Casal 2 pela moto 4. “Quando fiz 80 anos, o meu marido e filhos tinham medo que eu me desequilibrasse da mota”. E como tal, passou a ter moto 4. Tem uma de trabalho – que até dá para colocar um atrelado – e outra para vir à cidade.

“Vinte piscinas em cada aula”

“Sempre nadei, desde miúda”, contou Estefânia Barreto que assim que abriu a piscina dos Pimpões, nos anos 80, foi das primeiras a inscrever-se. Teve lições de natação para aprender as várias técnicas e hoje prefere nadar costas e bruços porque o crawl cansa-a muito. Em todas as aulas, faz pelo menos 20 piscinas.
“O meu médico diz-me que eu não preciso de remédios, mas não posso deixar a natação. Até me ajuda a desanuviar o espírito!”, conta.
Estefânia Barreto optou por nunca pintar o cabelo, mas ao invés “toda a vida me maquilhei”, disse, mostrando os olhos, delineados a azul.
Há só uma coisa que não a entusiasma: os computadores. “Com as novas tecnologias sou uma nulidade”, afirmou a caldense para quem o telemóvel só serve para fazer e receber chamadas, pois não sabe mandar mensagens. No entanto, sabe de cor os números dos telemóveis dos seus amigos, filhos e netos.

“Foram 59 anos de amor”

É a nonagenária na sala de jantar. Ao fundo o seu avô, Sales Henriques, fundador dos Bombeiros das Caldas

Estefânia casou em 1954 com Luís Barreto. “Tive um casamento de amor. Apaixonámo-nos no teatro”, contou a nonagenária que pertenceu ao Conjunto Cénico Caldense. “Nas Caldas havia bons artistas como a Arminda Alves ou o Paniágua com quem tive a honra de contracenar”, disse. Foi na peça “A Raça” que conheceu aquele com quem iria casar. Luís Barreto acabava de chegar à localidade em 1952. Era avançado centro e, por isso, a contrapartida em vir nesse ano jogar para o Caldas era que lhe arranjassem emprego. Graças a isso foi trabalhar para a Câmara. O jovem também se inscreveu no Orfeão e como a peça “A Raça”, do CCC (Conjunto Cénico Caldense) tinha ficado sem galã, foram perguntar-lhe se queria entrar na peça e ele acedeu ao convite.
“Eu era uma fidalga e ele representava um rapaz humilde, filho dos criados, que tinha regressado à aldeia como médico”, relembrou a nonagenária que era nove anos e meio mais velha do que ele. Ela tinha 28 anos e ele 19 e a ficção da peça acabou por se tornar realidade e ambos apaixonaram-se para a vida.
“Os pais dele aceitaram sempre bem, os meus acharam que era um disparate. Tivemos que namorar um pouco às escondidas…”, disse Estefânia, acrescentando que viveu um casamento muito feliz, que durou 57 anos. O casal teve três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Depois de ter trabalhado na Câmara, Luís Barreto passou para a Secla, onde laborou durante 40 anos.

“Mal ou bem, faço tudo sozinha”

“Mal ou bem faço tudo sozinha”, disse a nonagenária enquanto dava a erva que a própria apanhou aos seus animais. Actualmente, como tem medo de cair, anda com o apoio de uma canadiana.
“Sinto por vezes que estou um pouco perra das pernas… Se eu andasse como nado, estava tudo bem!”. Nos dias de hoje, ainda lê o jornal e enfia a linha na agulha, sem precisar de óculos.
É também uma doceira de mão cheia – faz trouxas e lampreias nas épocas festivas, além dos bolos de aniversário dos seus familiares. Estefânia Barreto tem três filhos, sete netos e um bisneto.

“Levar saúde às escolas e às aldeias”

Estefância Barreto começou por trabalhar no então Dispensário de Higiene Social que ficava na Rua do Montepio onde abriu o serviço de puericultura em 1961. Tem o curso de visitadora sanitária relacionado com a saúde pública. Mais tarde, foi equiparado a enfermeira desta área específica.
“Só fiz medicina preventiva e apanhei as campanhas de vacinação. Era raro o dia em que não vacinava perto de cem pessoas”, contou a caldense, que vacinou contra a poliomielite, difteria, tosse convulsa, tétano e varíola (doença que entretanto foi erradicada). E recorda que não existia material descartável. Ao fim do dia, todo o material utilizado tinha que ser esterilizado.
Estefânia fazia puericultura que naquele tempo passava pelo aconselhamento às mães e pesagem dos bebés por todo o concelho das Caldas.
Recorda-se, por exemplo, que no Bairro das Morenas “não havia uma única casa de pedra e cal”. Sem esquecer que não existia electricidade, saneamento ou água canalizada e que era difícil ensinar higiene a quem vivia naquelas condições. A jovem ensinava as mães a fazer uns “biberões” caseiros, ensinando a esterilizar em água fervente as garrafas de gasosa usadas para dar o leite aos petizes. A então visitadora chegou inclusivamente a pedir biberões à Nestlé e conseguiu que lhe fossem enviados.
Estefânia Barreto recorda que na primeira sala do Dispensário já se fazia a prevenção da sífilis e davam-se vacinas. Na sala seguinte, além da puericultura, fazia-se saúde materna. “Lembro-me que distribuíamos leite em pó às crianças cujas mães não tinham para lhes dar”, contou. Era infelizmente comuns aparecerem crianças com dois e três meses, alimentados a açorda.
Estefânia Barreto passou em finais de 60 a fazer o trabalho de visitadora nas aldeias. Primeiro ia de táxi, depois compraram um carro e “era eu que era também a chofer!”, contou. A caldense também levou às saúde às escolas, tendo encontrado vários crianças com dificuldades de visão e que encaminhou para oftalmologistas.
Já nos anos 70, o Dispensário passou para o edifício do Hospital das Caldas. A nonagenária recorda-se que quando se deu o 25 de Abril “já lá estávamos”. Quem tinha lojas ou trabalhava na restauração “tinha que ter o cartão de sanidade”, recordou Estefânia Barreto, explicando que era naquele serviço que se atestava a saúde dos profissionais daqueles sectores.

Infero d’Azenha colocou casal na lista da Pide

Um dos projectos do casal Estefânia e Luís Barreto foi o Inferno d’ Azenha, um espaço de tertúlia situado na Quinta de Sto. António que mais tarde deu lugar a uma discoteca.
A ideia inicial foi do seu marido, que quis aproveitar a azenha da casa e transformá-la num espaço de convívio. Este foi inaugurado em 1964 para celebrar o 40º aniversário de Estefânia. E logo nos primeiros tempos, era possível antever que o Inferno d’Azenha se transformaria num verdadeiro sucesso. Os amigos levaram outros amigos e o espaço tornou-se num lugar da moda, atraindo autores e cantores. Os artistas da cidade eram habituées do Inferno da Azenha. O ceramista Ferreira da Silva e o escritor Luiz Pacheco eram presenças regulares.
“Vieram cá actuar Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e o Vitorin
o”, disse a nonagenária, que gostava de receber os convivas na sua Azenha. Por causa destas e outras actuações de cantores de intervenção, o casal tinha o nome na Pide. “Se não fosse o 25 de Abril, tinham-nos engavetado”, contou a caldense, que confirmou, através de um amigo advogado, que os seus nomes estavam nos arquivos da polícia política.
Estefânia e Luís Barreto deixaram de gerir o Inferno d’Azenha nos anos 70. O espaço ficou a cargo de um dos filhos e sobrinho, que o exploraram durante mais uns anos. “Ainda chegou a estar alugado a gente de fora, mas depois, como não pagavam a renda, desistimos”, contou a caldense, explicando ainda que o Inferno d’Azenha está arranjado e que, de vez em quando, acolhe festas de familiares e amigos.