Faz esta noite 125 anos que o vapor inglês Roumania naufragou em frente ao Gronho provocando a morte de 106 pessoas, parte delas militares britânicos, funcionários civis e missionários. A notícia fez ocorrer à Foz do Arelho turbas para roubar os despojos do malogrado navio, tendo sido necessária a presença do exército para manter a segurança e evitar mais mortes porque havia quem se afogasse vítima da sua ganância.
Há 28 anos a Gazeta das Caldas impediu que fossem destruídas as sepulturas de alguns náufragos ingleses que estavam no cemitério da Serra do Bouro e que hoje permanecem preservadas constituindo um singelo património histórico.
É também esta história que hoje contamos.
A viagem correra mal desde o princípio. Mal zarpara do porto de Liverpool, o Roumania, que rumava para a Índia com 68 passageiros e 46 tripulantes a bordo, apanhara mau tempo e navegara sob intensa chuva e forte ondulação. Os passageiros passaram a maior parte do tempo no salão ou nos seus camarotes, muitos deles enjoados.
Na noite de 27 para 28 de Outubro, pela 1h00 da manhã, o navio encalhou em frente ao Gronho. Não era suposto. A sua rota deveria passar a 20 milhas da Foz do Arelho e oficiais da Marinha portuguesa na época disseram aos jornais que teria sido mais prudente o navio ter navegado ao largo das Berlengas em vez de ter tentado passar entre o Cabo Carvoeiro e aquelas ilhas.
O certo é que a noite estava escura, havia borrasca e naquele tempo não havia radar nem sistemas de navegação por satélite. Quando o Roumania arrochou, não tardou a ser desfeito pelas ondas, que varreram o convés, arrastaram passageiros para o mar e esmagaram os que ficaram nos camarotes. Só dois oficiais britânicas e seis tripulantes indianos se salvaram.
Os jornais da época relatam que os cintos de salvação que supostamente deveriam estar colocados nas cabines tinham sido retirados para arranjar mais espaço para a bagagem. Na hora da desgraça, em vão os passageiros os procuraram.
Pode parecer incrível como é que a 200 metros da costa não se conseguiu salvar mais gente. Mas isso explica-se pela falta dos cintos de salvação, pela forte ondulação do local, pela escuridão (não havia iluminação naquela zona, à data pouco habitada) e também porque não houve qualquer tentativa organizada para salvar pessoas.
O comandante foi dos primeiros a perecer. Um dos oficiais ingleses que se salvou, o capitão Hamilton, diz que o avistou na ponte de comando, em pé, de pijama, mas que essa aparição durou o tempo em que uma onda o levou. Apesar de ter sido vários vezes premiado por ter salvo navios em dificuldades, o comandante Youg (England, segundo outras versões), não conseguiu salvar o seu e chegou-se a desconfiar das suas capacidades mentais pois consta que esteve vários dias sem verificar a rota. A hipótese de se ter suicidado, deixando-se levar pelas ondas, não ficou posta de parte.
Já o capitão Hamilton, de 32 anos, que viajava com a sua jovem esposa (tinha ido de férias a Inglaterra para se casar), contou que estava a tentar salvá-la quando de repente perdeu os sentidos. Acordou pouco depois a flutuar junto ao casco do navio e conseguiu nadar para terra, tendo-se despido para poder ter os movimentos mais livres.
O tenente Rooke, que viajava com ele na mesma cabine (homens e mulheres viajavam em camarotes separados mesmo quando casados), contou que foi arrastado pela violência das ondas e, quase sem dar por isso, acabou por ir parar a terra firme.
Já os seis indianos que sobreviveram, aos jornais portugueses contaram que tinham conseguido baixar um escaler e remado para a praia, mas nos depoimentos às autoridades britânicas, temendo ser acusados de não ajudar os passageiros, relataram versões diferentes que coincidiam em ter sido atirados à água e conseguido sobreviver por se terem agarrado a destroços.
O SAQUE
Num suplemento que em 10/03/1989 a Gazeta das Caldas publicou sobre este naufrágio, relatávamos a forma despudorada como multidões ocorreram à praia para roubar os despojos.
O “Caldense” refere que quatro homens “foram levados pelas ondas quando estavam a apanhar uns volumes que andavam à tona da água”.
Apesar da tropa que foi enviada para o local, um jornalista do “Século” que a 30 de Outubro (três dias depois do naufrágio) visita o local, relata que “é incrível o que se tem passado. Os roubos não teem conta. Em todas as terras se vendem objectos roubados na praia. Barruncho [administrador do concelho de Óbidos] apreendeu vários furtos. O povo em massa rouba tudo. A tropa é pouca e sem força para vencer os gatunos.”
O aproveitamento político do naufrágio é óbvio e vem plasmado nos jornais da época favoráveis ou opositores ao governo. O “Correio da Noite” diz que “a fiscalização exercida em toda a costa pela guarda fiscal e exército está sendo muito bem feita pelo capitão Garcia”. Mas o “Século” insurge-se contra as autoridades por deixarem os corpos desnudos “insepultos durante quatro dias, expostos à curiosidade do povo, que não sabia respeitar o pudor, e que, n’uma impertinência criminosa, descobria os cadáveres para lhes observar as formas”. E acrescentava: “os fardos de fazendas foram abertos, e toda aquella turba roubou peças de seda, de chitas, de pannos, caixas de vinhos da Madeira e do Xerez, tudo enfim cuanto lhe apetecia à cubiça desenfreada”.
O jornalista diz que os militares eram poucos para impôr o respeito e que “aqueles selvagens, de cima das rochas, aggrediam à pedrada os soldados, que não podiam defender-se. (…) O povo já tem roubado algumas dezenas de contos de réis! D’esta situação é responsável o administrador do concelho [presidente da Câmara na designação de hoje], porque deveria ter requisitado forças militares e devia ter feito guardar toda a costa. Mas o administrador andava entretido com as eleições!…”
Cem anos depois ainda havia na região quem guardasse tecidos que tinham pertencido aos despojos do Roumania.
O navio transportava sobretudo fazendas, chitas e sedas, que foram dando à costa. Em 1963 foram feitos trabalhos de recuperação de salvados, tendo-se furado, através de explosões controladas, o casco do navio e dele retirados mais sacos com tecidos e, curiosamente, máquinas de costura. Foram avistados carris e uma locomotiva desmontada, destinados a alguma linha férrea das colónias índias.
Esses trabalhos de mergulho, não isentos de perigos, foram realizados pela firma António M. Parreira Cruz & Herdeiros, Lda. em períodos de tempo muito curtos, na maré baixa e nas poucas vezes em que o mar junto à aberta está calmo. Logo que a ondulação aumentava os mergulhadores tinham de ser içados.
O “desaparecido” cemitério inglês da Serra do Bouro
Um edital publicado pela Junta de Freguesia da Serra do Bouro na Gazeta das Caldas em Dezembro de 1988 anunciava que, caso ninguém os reclamasse, iriam ser exumados os restos mortais de cidadãos ingleses vítimas do naufrágio de 1892. O cemitério iria ser ampliado e era necessário ocupar o espaço então ocupado por estas sepulturas que constituíam um espaço próprio – designado Um edital publicado pela Junta de Freguesia da Serra do Bouro na Gazeta das Caldas em Dezembro de 1988 anunciava que, caso ninguém os reclamasse, iriam ser exumados os restos mortais de cidadãos ingleses vítimas do naufrágio de 1892. O cemitério iria ser ampliado e era necessário ocupar o espaço então ocupado por estas sepulturas que constituíam um espaço próprio – designado “Cemitério dos Ingleses” visto que, sendo protestantes, não tinham sido enterrados em solo católico.
Os cadáveres que em 1892 foram dando à costa, numa extensão que terá sido entre Peniche e S. Martinho do Porto, foram sendo enterrados nas freguesias mais próximas. Gazeta das Caldas descobriu então que havia lápides em inglês nos cemitérios de Peniche, Óbidos, Vau, Famalicão e Serra do Bouro. De todas, porém, as mais significativa eram as da Serra do Bouro por constituírem um núcleo próprio, devidamente vedado, separando assim as almas protestantes das almas católicas.
A defesa que então o nosso jornal fez pela preservação do Cemitério Inglês da Serra do Bouro, apoiado pelos poucos cidadãos britânicos que há 28 anos atrás viviam na região, não salvou aquele património, mas, pelo menos, conservou as lápides que foram devidamente arrumadas num espaço próprio à entrada do cemitério. Não é um património monumental, mas é um testemunho interessante de um acontecimento que marcou uma época e ainda é visitado sobretudo por súbditos de Sua Majestade, nostálgicos ou não, do velho Império Britânico. C.C. visto que, sendo protestantes, não tinham sido enterrados em solo católico.
Os cadáveres que em 1892 foram dando à costa, numa extensão que terá sido entre Peniche e S. Martinho do Porto, foram sendo enterrados nas freguesias mais próximas. Gazeta das Caldas descobriu então que havia lápides em inglês nos cemitérios de Peniche, Óbidos, Vau, Famalicão e Serra do Bouro. De todas, porém, as mais significativa eram as da Serra do Bouro por constituírem um núcleo próprio, devidamente vedado, separando assim as almas protestantes das almas católicas.
A defesa que então o nosso jornal fez pela preservação do Cemitério Inglês da Serra do Bouro, apoiado pelos poucos cidadãos britânicos que há 28 anos atrás viviam na região, não salvou aquele património, mas, pelo menos, conservou as lápides que foram devidamente arrumadas num espaço próprio à entrada do cemitério. Não é um património monumental, mas é um testemunho interessante de um acontecimento que marcou uma época e ainda é visitado sobretudo por súbditos de Sua Majestade, nostálgicos ou não, do velho Império Britânico. C.C.